até 30 de outubro | Qua a Dom, 19h00
Teatro da Trindade INATEL | Sala Estúdio
9€ a 12€ | Comprar bilhetes
Classificação M/16
SINOPSE
O espetáculo “Jesus, o Filho” retrata o transtorno “Hikikimori”; o isolamento, a exclusão social e a morte (in)voluntária. A vida é uma sucessão de perdas: dos sonhos, da coragem, da identidade, da liberdade.
O agressor da sociedade positivista contemporânea tornou-se invisível: Jesus foge e refugia-se em casa. Mas haverá um lugar seguro?
Este último texto da trilogia A Sagrada Família de Elmano Sancho (“José, o Pai”, “Maria, a Mãe” e “Jesus, o Filho”) é um “apokálypsis” (revelação, em grego), um auto da fé, uma imolação, um cerimonial poético-perverso sobre a despedida, o fim e a salvação. Jesus, o Filho, sacrifica-se na esperança de se (nos) salvar; o sacrifício materializa-se através da confissão e do abandono progressivo do discurso. O espetáculo apresenta, como estrutura dramatúrgica/cénica, os passos da confissão: o exame de consciência, o arrependimento, a confissão e o cumprimento da penitência. O sacrifício íntimo de Jesus, o Filho, no espaço público da cena, é o ato de rebelião esperado; o combate para recuperar a identidade perdida no massacre desleal da vida quotidiana. Mas, redentora, a confissão não perde nunca a faceta dura do interrogatório: a exposição, a humilhação e a violência.
FICHA TÉCNICA E ARTÍSTICA
Texto e encenação Elmano Sancho
Com Elmano Sancho, Joana Bárcia, Vicente Wallenstein e Ruy de Carvalho (voz off)
Espaço cénico Samantha Silva
Desenho de luz Pedro Nabais
Figurinos Ana Paula Rocha
Confeção Mestra Olga Amorim
Assistência de encenação e produção Paulo Lage
Coprodução Teatro da Trindade INATEL, Loup Solitaire, Casa das Artes de Famalicão e Teatro Municipal de Bragança
Parcerias ACEGIS, ADEB, ADSCCL, AGUINENSO, APOIARTE/Casa do Artista, Moinho da Juventude
Apoios Câmara Municipal de Lisboa, Fábrica das Boas ideias, Projeto financiado pela Direção-Geral das Artes (apoio a projetos)
[TEXTO DO ENCENADOR]
ÚLTIMO TEXTO DA TRILOGIA A SAGRADA FAMÍLIA DE ELMANO SANCHO
Jesus, o Filho retrata o universo contemporâneo, imprevisível, de perdas sucessivas e (in)esperadas: a perda da juventude, dos sonhos, da família, da identidade, da coragem, da integridade, da liberdade, da vida. O espetáculo é um apokálypsis (revelação, em grego), um auto da fé, uma imolação, um cerimonial poético-perverso sobre a despedida, o fim do mundo e a busca de salvação. Jesus, a personagem central – que não é Jesus, mas que não deixa de ser um “messias” – fala connosco sem artifícios, delivrando a sua coragem e inteligência. É um homem comum que não se deixa influenciar, que não muda de discurso, nem de tom de voz. Que se mostra firme e resistente, implacável na sua crítica ao mundo. Que ganha uma dimensão mítica e heróica, política e humana, que o distingue de todos os demais. Um homem que vai morrer, mas que continua onde está. Sendo o que é. Humano. Um homem-guia que tem medo, como todos nós, mas que continua vivo, no meio do horror e da morte.
O sacrifício íntimo de Jesus, o Filho, no espaço público da cena, é o ato de rebelião desesperado; o combate para recuperar a identidade perdida no massacre desleal da vida quotidiana. Mas, redentora, a confissão não perde nunca a faceta dura do interrogatório: a exposição, a humilhação e a violência. “Estou cansado, porque, a certa altura, a gente tem de estar cansada. De que estou cansado, não sei, de nada me serviria sabê-lo, pois o cansaço fica na mesma.” (Fernando Pessoa in “A Mística do Instante” de J.T. Mendonça, 2015). O espetáculo apresenta, como estrutura dramatúrgica/cénica, os passos da confissão e da reconciliação: o exame de consciência, o arrependimento, a confissão e o cumprimento da penitência.
O exame de consciência é o momento da confrontação; o silêncio que precede à autorreflexão. O arrependimento é o resultado da análise individual do exame de consciência. Dele surge a possibilidade de transformação e redenção.
A confissão permite uma responsabilização individual e, em certa medida, coletiva.
Por fim, a penitência, surge como a possibilidade de reparar os danos causados e de alcançar a redenção.
A confissão existe porque a morte é uma evidência. Le mal de vivre, objeto de estudo de tantos filósofos, poetas, artistas da corrente existencialista, como Kierkegaard (existencialismo cristão), Heidegger (existencialismo ateu), Sartre (existencialismo agnóstico) encontra o seu fundamento no caráter definitivo da morte: passamos a vida a tentar entender o sentido da existência humana. Mas a confissão rapidamente se torna num processo ad eternum por não resolver nada de forma definitiva. É preciso regressar a ela, uma e outra vez, para atenuar a dor e a culpa.
O género confessional, apresentado por Rousseau como a vontade em ser sincero e humilde, abre aqui caminho para a revolução e a transformação através da dor. No entanto, na sociedade contemporânea, a dor tornou-se sinal de fracasso pessoal: a raiva, a dúvida, o descontentamento, são abolidos para darem lugar à ideia de felicidade, suprimindo, nomeadamente, a dimensão social da dor.
A trilogia da Sagrada Família (José, o Pai; Maria, a Mãe e Jesus, o Filho) traz, portanto, não só o questionamento da família perfeita como ideal inalcançável, como restitui à dor a sua dimensão social, conferindo-lhe uma função entorpecedora e oferecendo a possibilidade de a atenuar simbólica e coletivamente. Se formos privados do significado e da linguagem da dor, estamos declaradamente sós. Apresentar a dor como tema central do espetáculo é afirmar a própria vida como estrutura da dor. É inútil tentar eliminá-la da realidade; seria como abraçar a ficção, a alienação ou o delírio. No entanto, a dor não é tida em consideração no mundo digital. Somos performativos: sem falhas, distúrbios, angústias, emoções. Sofremos em silêncio e afastamo-nos, progressivamente, dos outros. A presença do oratório em cena vem relembrar o papel crucial do ritual: é preciso resgatar a poética da dor e reforçar o sentido de comunidade face ao individualismo crescente, permitindo, através da experiência ritualística e intimista, a reintegração física e espiritual do indivíduo e do grupo.
A personagem de Jesus pode assemelhar-se, em certa medida, aos “hikikomoris”. Estes indivíduos apresentam, geralmente, um transtorno caracterizado por um comportamento antissocial e evasivo que os fazem abandonar a sociedade. Escapam da realidade, isolam-se nos seus quartos, veem televisão, jogam computador, leem livros, assumem outras identidades; em suma, não suportam a dor provocada pela vida social. Este fenómeno, inicialmente circunscrito à sociedade japonesa, alastra-se, progressivamente, para o ocidente.
A globalização, a recessão económica, as mudanças na estrutura económica agravam-no. Os “hikikomoris” são vítimas do sistema; a exigência de um nível extremamente elevado de requisitos profissionais e pessoais, sem garantia de um emprego e um lugar digno na sociedade, obriga-os a refugiarem-se num mundo paralelo, mais seguro e menos hostil. Através de um processo litúrgico do quotidiano, validam, como podem, as suas vidas, libertando-se das dores infligidas pela sociedade.
Central na existência humana, a família, esfera privada que mede o mundo e reconstrói identidades, é a última esperança para estes indivíduos: vive-se em família e morre-se em família. O retorno de Jesus à família é um retorno a si mesmo. Mas o sofrimento habita todos os lugares. Jesus, o Filho – tragédia da identidade – aborda a incomunicabilidade, a descrença, a solidão, o desgaste e a reclusão.
– Elmano Sancho