Manuel da Silva Ramos nasceu em 1947 na Covilhã (Refúgio), cidade onde concluiu os estudos liceais. Estudou Direito na Universidade de Lisboa durante quatro anos, mas acabou por exilar-se em França a partir de 1970. Viveu em Toulouse entre 1970 e 1997. Regressado a Portugal em 1997, Manuel da Silva Ramos passaria a década seguinte em intensa atividade literária, publicando uma série de romances em que são visíveis certos tópicos da narrativa do exílio, da emigração, da colonização e da diáspora portuguesas. Em algumas obras recentes, a deslocação manifesta-se também sob a forma da viagem de criação literária, concebida para incorporar o espaço geográfico e cultural no espaço literário.
No livro de estreia, “Os Três Seios de Novélia” (1969, Prémio de Novelística Almeida Garrett), a deambulação pelas ruas da cidade de Lisboa é o ponto de partida para o extenso conjunto de deslocações no espaço do mundo e no espaço da escrita que a sua obra viria a materializar.
A temática da portugalidade domina a experimentação narrativa e tipográfica das obras iniciais. Escrita em co-autoria com Alface, a trilogia Tuga inclui os romances “Os Lusíadas” (1977), “As Noites Brancas do Papa Negro” (1982) e “Beijinhos” (1996). Partir, viver noutro lugar e retornar circunscrevem o ciclo da trilogia. Nos três romances a viagem no território é assimilada à viagem no interior dos mecanismos paronomásicos da língua e do discurso. O texto oferece-se ao leitor como viagem de decifração da sua verbivocovisualidade associativa, sobrecarregada de imagens anais e genitais. Os procedimentos paródicos, a nível estilístico e narrativo, são particularmente evidentes em “Os Lusíadas”. A ascendência joyceana da trilogia manifesta-se na inventividade verbal, na comicidade escatológica e sexual, na ironia paródica e meta-referencial, e num maximalismo rabelaisiano. A viagem e a deambulação reaparecem em outras obras como “Viagem com Branco no Bolso” (2000) ou “Jesus – The Last Adventure of Franz Kafka” (2002). A sua escrita pode dizer-se ambulatória neste duplo sentido: o da viagem permanente pelos espaços que produzem a identidade; e o da viagem nos espaços mentais e verbais que reproduzem formas de pensar, dizer e constituir a experiência do mundo.
A ironia sarcástica e a paródia literária manifestam-se, por vezes de forma hilariante, nas suas obras a solo. A sua capacidade de invenção, de grande truculência metafórica, alterna o lírico e o narrativo, em formas breves ou longas – uma instabilidade de modo e de género, reconhecida por Óscar Lopes já em 1969. Na torrencialidade omnívora dos monólogos interiores plasmam-se as estruturas sexistas e racistas da ideologia do macho lusitano e um certo atavismo mental da trindade Fátima-fado-futebol. A representação do corpo erótico surge associada a modos de figuração que funcionam quase sempre como objetificadores e subordinadores da mulher. De forma similar, assoma com frequência a figura do preto nas diversas manifestações verbais produzidas pelo medo visceral do outro no inconsciente colonial. Estes e outros arquétipos, como a taberna e o bordel, materializam certos fantasmas de poder da ideologia lusitana, comprovando a sua virulência e persistência, mesmo numa sociedade europeizada e globalizada.
A opção pelo princípio de surrealização e deformação verbal do real pode ver-se na relação quase arbitrária que os seus romances estabelecem entre factos e ficções. Em obras como “Viagem com Branco no Bolso” (2000), “Café Montalto” (2003) e “A Ponte Submersa” (2007), por exemplo, Manuel da Silva Ramos parte de uma investigação histórica ou jornalística sobre indivíduos e acontecimentos, mas sem qualquer preocupação de reconstituição ou de verosimilhança. Em “Viagem com Branco no Bolso” (2000), as figuras do Anão do Arcozelo (António Lopes Ferreira, 1943-1989, 75 cm) e do Gigante de Manjacaze (Gabriel Estêvão Mondlane, 1945-1990, 2.45 m), que ligam o Norte de Portugal a Moçambique, servem para caricaturar práticas culturais e sociais da portugalidade fascista e colonialista. Em “Café Montalto” (2003), diversas fotografias são usadas como vestígios da indústria de lanifícios e da vida social e económica da Covilhã entre 1963 e 1986. Em “A Ponte Submersa” (2007), o ponto de partida é um conjunto de homicídios ocorridos em Santa Comba Dão. Todavia, documentos e depoimentos são apropriados e redefinidos pela ordem discursiva da representação e pelas figuras obsessivas desse discurso, entre as quais se destacam as figuras da deambulação, da puta, do macho, do operário, do patrão, do anão, do preto, da estrangeira ou do portuga.
No caudal de palavras apreende-se a dimensão ideológica da ficção enquanto técnica particular de deformação do mundo. Os fantasmas do fascismo, do racismo, do sexismo ou do liberalismo encarnam nas próprias estruturas linguísticas, e não apenas nas personagens, espaços e ambientes descritos ou evocados. A língua surge como acto de fala do falo, instrumento do poder e da violência que os indivíduos exercem e sofrem. Por vezes, a voz invasiva do próprio escritor, ou de uma sua figura, desce ao plano interno da narrativa, desfazendo a transparência realista ou a lógica caricatural do enquadramento. A presença da chuva como narradora em “A Ponte Submersa” é um outro exemplo da aproximação entre o narrativo e o discursivo. Por isso, os leitores não podem acreditar senão no mecanismo verbificador da língua e da escrita, na sua capacidade de factualizar a ficção e oferecer o real sob a forma de paródia cómica e de discurso alienado. Prisioneiros da ideologia da forma e da língua, os textos combinam a inverosimilhança da auto-reflexividade narrativa com o riso auto-surpreendido da palavra consigo mesma com o pathos afetivo do monólogo interior.
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