“Pérola sem rapariga” é o primeiro de um díptico que resulta do encontro entre a encenadora Zia Soares e a escritora Djaimilia Pereira de Almeida, que juntas construíram este espetáculo sobre o corpo e a obsessão de olhar.
Com estreia marcada para o dia 02 de junho em Alcanena, no âmbito da Odisseia Nacional do Teatro Nacional D. Maria II, o espetáculo “Pérola sem rapariga” parte de um encontro entre Djaimilia Pereira de Almeida e Zia Soares.
“Encontrámo-nos, percebemos que estávamos interessadas no trabalho uma da outra, e decidimos que poderíamos eventualmente criar um projeto juntas, e andámos ali uns tempos a namorar uma e outra”, contou a encenadora à Lusa, no final de um ensaio.
Até que chegou uma altura em que decidiram trabalhar juntas e surgiu a ideia de fazer este díptico, um projeto constituído por dois espetáculos: “Pérola sem rapariga”, que é o primeiro, e “As telefones”, o segundo, que se estreia mais para o fim do ano.
A peça que agora sobe à cena parte de uma ideia que Djaimilia tinha a propósito de uma obra do fotógrafo alemão Alberto Henschel e de uma fotografia em particular, de uma mulher, em que só se vê uma orelha e um dos brincos.
Parte também de um livro de uma escritora alemã, Robbin Coste Lewis, “Voyage of the Sable Venus and Other Poems”, que é um longo poema, e a partir destas duas obras que interessavam a Djaimilia, a escritora vai pensando sobre isso.
“E quando pensámos sobre o nosso projeto, ela disse: ‘Se calhar podíamos partir daqui’”, contou, explicando que esse foi o ponto de partida, embora seguras de que não queriam fazer uma adaptação do livro, nem que o trabalho fosse uma interpretação da obra do fotógrafo, que durante a época colonial fotografou várias pessoas negras no Brasil, nomeadamente na Baía.
“Pensámos ‘isto é um ponto de partida para nós começarmos a criar alguma coisa’”.
Com essa premissa, encontraram-se no primeiro dia de ensaios, a escritora apenas com algumas linhas de uma cena, e a partir daí começaram a construir o espetáculo em conjunto, a dramaturgia, a encenação, o texto, tudo se montou em conjunto.
“Depois a isso somámos alguns artistas com os quais eu venho trabalhando há muitos anos, o Xullaji, que faz a música e depois fará também o próprio ‘design’ de som, a Neusa Trovoada, que fará toda a instalação, e o Kiluanji Kia Henda – que também já colaborei com ele -, em projetos dele e que agora o trago para um projeto meu”.
O cenário é escuro e os adereços de cena consistem numa escada, bancos com luzes e as obras de Kiluanji Kia Henda, que são caixas de luz com fotografias, uma espécie de radiografias.
“Porque também o próprio espetáculo é muito sobre esta obsessão de ver, de olhar, quem é que olha para quem, como olha, a partir de que perspetiva, quem é que se coloca para ser olhado. Aqui também a questão do próprio artista, que se coloca a toda a hora para ser olhado, no teatro, especificamente”, explicou Zia Soares.
A ideia é pensar a relação entre a superfície do corpo e aquilo que sobre ele se pode dizer.
Também a condição da mulher é explorada neste espetáculo, em que duas mulheres se expõem, mas ao mesmo tempo se libertam a elas próprias, com lutas internas.
“Apesar de todas as condicionantes para fora, há batalhas que elas travam internamente: a que é filha, a que é mulher, ou a que é noiva, a que trabalha, a que depois está sozinha nos seus sítios mais recônditos, de maior solitude, e partes das cenas são, talvez, as coisas que estão no interior e que saltam cá para fora, e que se calhar no nosso mundo quotidiano, não temos estas expressões, mas tudo isto muitas vezes está latente”.
Em palco, sobre um cenário negro, iluminado por alguns pontos de luz, os corpos negros das duas atrizes – Filipa Bousset e Sara Fonseca da Graça – movem-se, numa expressão física de libertação, e soltam gargalhadas, algumas escondem sofrimento, outras traduzem uma espécie de êxtase, e ao fundo, a música ecoa também esse riso.
“A questão da gargalhada é uma questão muito pertinente também para as pessoas negras. Durante muito tempo, as pessoas negras eram avaliadas pelos seus dentes, pela qualidade dos seus dentes, valiam mais ou menos em termos de mercado. Então também há esta coisa e também muitas vezes, os comportamentos. Quando estamos na presença de outras pessoas, qual é o nosso nível aceitável para rir e, pronto, há aqui um riso que tem várias simbologias, profundidades”. O espetáculo “Pérola sem rapariga”, que tem uma duração aproximada de uma hora, estreia-se no dia 02, no Teatro São Pedro, em Alcanena, e segue depois, no dia 09 de junho, para a Casa da Criatividade, em São João da Madeira.
Fonte: Agência Lusa | 27 de maio de 2023
Fotografia de Filipe Ferreira