Susanne Themlitz deixa-se fascinar pela paisagem

Em Almada, o Chão das Artes faz 20 anos. Susanne Themlitz foi convidada para trabalhar a partir deste jardim.

Há um jardim que está na génese desta exposição: o da Casa da Cerca, do qual, nada por acaso, se celebra este ano o vigésimo aniversário. Logo, deste lado da equação, temos um jardim integrado numa estrutura museológica da Câmara Municipal de Almada, que apresenta características muito particulares. Do outro, uma artista, Susanne Themlitz, que sempre (mas não exclusivamente) trabalhou o conceito de paisagem. “No fundo, ando sempre à volta da paisagem”, diz-nos no começo da nossa conversa, para logo se entusiasmar com a história que descobriu a propósito deste jardim.

A Casa da Cerca, uma antiga quinta de recreio como existem tantas nos arredores de Lisboa, é hoje sem dúvida alguma, e isto desde 1993, o espaço de exposições de arte mais conhecido no perímetro urbano de Almada. Fica na zona mais antiga, que é também aquela que está menos descaracterizada em toda a cidade. Pela conversa, percebemos que, para a artista, foi importante o convite feito pela curadora, Filipa Oliveira, para expor neste lugar. Themlitz estudou no ARCO, que fica no mesmo concelho, e por isso a ligação que mantém à margem sul de Lisboa é forte.

Arquitetonicamente, a Casa da Cerca possui uma planta em U que confina com o jardim. Nunca deve ter tido funções de aparato, mas deve ter sempre cumprido o papel de local de descanso e contemplação que ainda hoje, em parte, guarda.

Quando a casa abriu ao público, pensou-se logo em trabalhar o jardim que já existia. Entregou-se o projeto a um gabinete de arquitetura paisagística, o ASA – Andrade e Sousa Arquitetos, tendo Isabel Teixeira Dinis tomado a direção deste projeto. O conceito geral aliava a construção de um jardim botânico (ou seja, de um espaço que servisse também como museu de plantas) à interação sistemática com artistas e obras de arte. Por isso, o espaço tomou o nome de Chão das Artes – Jardim Botânico, e está hoje dividido em vários núcleos; destes, salientamos um Jardim dos Pigmentos, um Jardim dos Pintores, um Jardim dos Óleos, uma Charca. No dia em que o visitámos, embora fosse um dia de Inverno ensolarado mas muito frio, era um regalo examinar cada planta, cada etiqueta, e perceber a utilidade de cada espécime – nada de evidente para uma população que, apesar de viver noutra margem do rio, continua a ser urbana e a viver longe do contacto comum com a utilidade ancestral das plantas.

Assim, o jardim permite várias leituras, vários modos de o experimentar. Além disso, provém também ele de um desenho prévio, neste caso da arquiteta, que quis dar ordem e classificar aquilo que, na nossa experiência do mundo, é inclassificável: a natureza bruta, a natureza como força geradora de vida, mas também potência de destruição e de morte. Susanne Themlitz cria também mundos que, embora partindo todos eles do desenho e da apropriação das coisas da natureza, nos introduzem num universo ambíguo, estranho, na fronteira entre a imaginação e a realidade sem que, como sempre sucede nas obras plásticas mais interessantes, o consigamos classificar de forma clara e definitiva.

A artista deu a esta exposição o título de Um berlinde no chão, quase no meio da sala. Há uma segunda exposição no espaço da casa, na biblioteca, Folhas e Folhas, onde apresenta uma série de livros de artista e onde pratica exaustivamente o desenho de manchas de tinta com decalcomanias, como as que são usadas nos testes de Rorschach. Na primeira exposição, somos acolhidos no andar de baixo por uma grande tela pintada e desenhada, com representações e alusões a vários elementos do jardim: a retas rigorosas dos limites de talhões e canteiros, e os leves rizomas, quase invisíveis, que se escondem por baixo do chão. Uma personagem esculpida, que talvez não passe de uma armadura vazia, acrescenta estranheza a uma montagem que nunca perde um carácter cenográfico muito forte. Outro desenho, desta vez maioritariamente a grafite, estabelece a ligação com o piso superior e a grande sala comprida que ocupa um dos braços do U.

Nesta, sobressai uma enorme mesa, apoiada em cavaletes, onde a artista instalou um Laboratório de Desenho fascinante, datado 1986-2021 – ou seja, construído durante mais de trinta anos. Aqui, encontramos não apenas materiais que podem eventualmente servir como ferramentas de desenho, como outros, que se aproximam mais dos próprios resultados obtidos num processo que se prevê infinito e interminável. Caruma de pinheiro, pequenas sementes, cordéis pousados na tábua; corais, pedras, fósseis, peças de cerâmica encontradas e transformadas; moldagens em gesso e barro; caixas de moldes, conchas vazias, recipientes possíveis (como a personagem que estava na sala de baixo, de resto); máquinas de criar imagens – espelhos, copos e jarros transparentes, cheios de água, cristais, objetos de vidro esféricos, côncavos ou convexos; e muitos, muitos mais objetos, todos eles passíveis de se transformarem, por vontade da artista, em matéria-prima do trabalho sobre a linha desenhada que, tal como sucede num jardim, está sempre disposta a extravasar os limites do espaço.

Nesta sala há ainda um conjunto de pinturas – mais paisagem – montadas na parede às janelas viradas a sul, intituladas O jardim desdobrado ao longo da linha do horizonte. Embora a pintura se articule em torno da mancha de cor e do desenho a grafite, como é sistemático nesta exposição, a referência à paisagem – o rio, a ponte, a linha do horizonte de Lisboa – que se vê em frente impõe-se. Numa outra sala, as paredes cobriram-se de um papel de parede, elemento que Susanne Themlitz já usara noutras exposições, mas que neste caso é feito a partir da multiplicação de cartazes intervencionados. Aqui, como nas esculturas que estão dispostas no lugar, encontramos uma vocação de preenchimento total do espaço disponível como a marca autoral da artista. E, porque esse papel também inclui imagens de paisagens, parece notar-se uma vontade de trazer o espaço exterior para o interior da casa.

A última sala da exposição volta a apresentar objetos em cerâmica vidrada. Quando lhe perguntamos pelo interesse em materiais moles, que se transformam noutras coisas e que, no fundo, incluem uma componente temporal muito óbvia, diz que nunca tinha pensado nisso mas que, de facto, mesmo os fósseis, ou os seixos rolados que estão sobre a mesa do Laboratório de Desenho são, no fundo, matérias-primas moles. E que, no princípio, não era assim: “Eu comecei por estudar mármore.

Escultura em mármore! Nada estava mais distante do que me interessava”. E acrescenta que, mesmo os borrões de Rorschach, ou melhor, a tinta espessa que usa para os fazer, é no fundo uma pasta que se molda ao acaso e ao tempo, gerando formas significantes e proporcionando um novo olhar sobre o mundo. Sobre o jardim? Susanne Themlitz conclui: “É aquela coisa de eu ficar fascinada com o pormenor. Quero sempre virar o pormenor ao contrário e, ao agir assim, processar o meu olhar e o meu fazer.”

Fonte: Jornal Público | 28 janeiro 2022

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Susanne S. D. Themlitz
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