“Sombras Brancas”, novo filme de Fernando Vendrell

O realizador Fernando Vendrell falou ao JN sobre o seu filme “Sombras Brancas”, que tem um Rui Morisson soberbo, na recriação da imagem do escritor.

Onde é que o Fernando Vendrell e o José Cardoso Pires se cruzam ou se cruzaram?

Nós nunca nos cruzamos. Na minha adolescência, ele era uma figura icónica, era um escritor muito interventivo e com posições sociais e políticas muito fortes. Tinha um grande apreço por ele. Os meus primeiros embates com a literatura contemporânea, do século XX foram livros que o meu pai comprava e que eu lia. Um foi o “De Profundis Valsa Lenta”, outro foi o “Memória de Elefante”, do Lobo Antunes.

Porque escolheu este livro e não outro do Cardoso Pires?

Há sempre alguém que diz que os livros do Cardoso Pires são altamente cinematográficos e muito fáceis de adaptar. Eu considero que não. Mas decidi que queria fazer o “De Profundis Valsa Lenta” porque achei que era uma obra muito complexa e também porque relatava um feito sobre-humano, não era apenas um livro.

O que o seduziu mais nesta obra?

É um livro que conta uma situação dantesca, um escritor que perde a capacidade de se reconhecer a si próprio, a sua memória e que vagueia num universo de sombras brancas, sem rumo nenhum e que de repente é resgatado e pedem-lhe para escrever um livro. E escreve. É um livro único, na literatura portuguesa e mundial, que muitos cientistas leem. Sabemos ir à Lua, mas não sabemos como é que o nosso cérebro funciona.

Se os livros de Cardoso Pires são difíceis de adaptar, quais as principais dificuldades que sentiu?

A minha maior dificuldade foi como tratar um tema que é, em si, um bocadinho metafísico, transcendente. O que significa vaguear, sem ter reconhecimento de si, estar perdido, com uma afetação cerebral. Foi difícil de codificar isso. Por outro lado, também queria apostar numa certa espetacularidade. Tinha entre mãos uma história ‘bigger than life’, fora do usual, e queria dar essa dimensão.

A adaptação vai muito para além do livro, com esses momentos de reconstituição da vida do escritor…

Não queria o filme se passasse exclusivamente no hospital e lendo o livro é praticamente isso que acontece. Houve esta ideia de cruzar a imaginação com a realidade, os personagens com os amigos, as suas memórias com o tempo presente, e fazer uma amálgama no cérebro do escritor. Esse universo transporta restos da sua vida e das suas obras.

Esses momentos do filme dizem muito do que nós fomos e do que somos ainda. Foi também esse o seu objetivo, fazer uma espécie do retrato do país no século XX?

Eu tenho feito algum trabalho de cariz biográfico, até com as séries televisivas. O cinema é um meio que pode transportar sensações. Tanto as originais, quando os filmes são feitos nessa época, como na reconstrução dessas emoções e dessas sensações, vistas à luz da modernidade. Apesar deste filme ser uma obra de ficção, tem o seu quê de caráter documental.

Partilha da visão que o José Cardoso Pires tinha do mundo à sua volta?

O Cardoso Pires é exemplar como autor, pela obra escrita que deixou, a procura da língua, a procura de vivências. Era uma personalidade muito forte. A ideia para fazer este filme começou em 2012. Durante este tempo todo o meu socorro foi sempre a obra literária do Cardoso Pires. Foram momentos encantatórios e profundamente enriquecedores.

Teve sempre o apoio da família de Cardoso Pires?

Há uma gratidão muito grande, não só ao José Cardoso Pires como à família, que me deu inteira liberdade criativa. Eu revejo-me também um bocadinho na forma como o escritor procura a sua linguagem.

É impossível falar do filme sem referir o trabalho extraordinário do Rui Morisson. Parece que estamos mesmo a ver o José Cardoso Pires…

Não é igual, porque o José Cardoso Pires era mais baixo. O Rui Morisson foi escolhido na sequência de um casting com vários atores, a quem estou muito grato. Eu já tinha filmado com o Rui e senti o rosto del um bocadinho mais marcado, se calhar também por causa da pandemia. Vi um tom de possibilidade de morte, de inquietação, e isso achei muito forte. Este filme tem um dos maiores trabalhos do Rui Morisson como ator.

A família do Cardoso Pires já deve ter visto o filme. Qual foi a reação?

A escolha da roupa e dos óculos foi cingida pelo que conhecíamos do José Cardoso Pires. E as filhas tiveram mesmo um choque, com a primeira imagem do Rui. No final, a viúva, a Edite, estava no domínio da perplexidade. Achou que os movimentos das mãos, a gestualidade do Rui, eram tão próximas que estava convencida que eles se tinham conhecido. O Rui nunca o conheceu, mas fez esta interpretação.


por João Antunes in Jornal de Notícias | 19 de abril 2023
Foto: Álvaro Isidoro/Global Imagens

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Fernando Vendrell
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