Sérgio Azevedo: “Na minha música há sempre lugar para a tradição”

Quatro álbuns editados num só ano e a perspetiva de mais sete deixam perceber o ritmo de trabalho do compositor. São mais de 30 anos de carreira, entre composição – uma das mais extensas obras atuais -, ensino e divulgação. O JL entrevista Sérgio Azevedo

“Música é comunicação”, afirma o compositor Sérgio Azevedo (SA), que tem o propósito expresso no seu idioma, um lema que também estende às editoras com que tem trabalhado nos anos mais recentes, para que a obra circule mais, a nível nacional e internacional, quer através da edição em disco e das plataformas, quer pela publicação das partituras.

“Duas editoras são especialmente importantes para mim”, disse ao Jornal de Letras, enumerando o Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa (MPMP) e a coleção Benjamim, na área da música para crianças, com lugar significativo na sua produção, e a Naxos, não apenas por ser a maior, a nível mundial, dedicada à música erudita, mas sobretudo pelo “grande controlo de qualidade” em cada publicação.

Os três discos surgidos nos dois últimos meses de 2021 provêm exatamente destes dois catálogos: Viagens Imaginárias, com a obra para piano a quatro mãos, tem o ‘selo’ MPMP, enquanto Bows Up! (Arcos ao Alto!), com obras para orquestra de cordas, e Hukvaldy Cycle, inspirado no universo de Janacek, levam a marca da Naxos. Estes três álbuns, chegados ao mercado desde o final de outubro, sucedem a um outro, com o concerto para flauta “Giochi di Uccelli / Jogos de Pássaros”, pela Orquestra Metropolitana de Lisboa, publicado na primavera passada.

“A pandemia cancelou muitos concertos, mas também obrigou os músicos a voltarem-se para os estúdios de gravação”, diz. Assim “saíram e vão continuar a sair mais CD com peças minhas nestes dois anos do que nos dez anos anteriores”.

De qualquer modo, a perspetiva também mudou. Há mais obras e mais compositores portugueses editados em disco, há mais partituras disponíveis.

“As novas tecnologias têm facilitado imenso e baixado os custos, quer da gravação quer da edição de peças. Os ‘softwares’ de edição musical, o ‘print-on-demand’, as novas e portáteis aparelhagens de gravação e edição permitem rapidez, qualidade e sustentabilidade financeira de muitos projetos, algo que há 20 ou 30 anos era totalmente impensável”.

A generalização do trabalho em computador, o suporte eletrónico de partituras, a documentação de estreias por gravações em vídeo – possíveis até por telemóveis – o contacto à distância, quer de músicos e compositores, quer a nível do ensino, e o uso de plataformas como o Youtube, “uma mina inesgotável de informação”, alteraram o panorama existente e a própria “pandemia obrigou a um salto tecnológico que, no futuro, será uma boa ferramenta”.

“Graças à tecnologia de hoje, a música portuguesa tem circulado no mundo como nunca antes o fez”, garante Sérgio Azevedo.

“Viagens Imaginárias”, por Diana Botelho Vieira e Samuel Picado, é o terceiro disco do compositor na coleção Benjamin da MPMP, depois de A Toque de Caixa, também por Diana Botelho Vieira, e Charadas da Bicharada, pelos coros Voximini e Voximix. Hukvaldy Cycle, pelo Ensemble Darcos de Nuno Côrte-Real, e Bows Up!, pela Camerata Atlântica, de Ana Beatriz Manzanilla, juntam-se a uma edição anterior do Trio Pangea, e elevam para quase uma dezena o número de obras de SA na Naxos.

O próximo álbum a sair nesta editora inclui Popularuskia I, pelo Quarteto de Cordas de Matosinhos. É um dos discos previstos para o próximo ano.

Na coleção da MPMP, SA destaca “um trabalho nunca antes igualado, nem sequer aproximado, pela divulgação em disco do repertório português para crianças e jovens”, um trabalho totalmente disponível nas principais plataformas digitais. No caso da Naxos, sublinha a capacidade de distribuição global, de “chegar a todo o lado”.

“As partituras [através das edições AVA] são tocadas do Canadá ao Japão, de Inglaterra à Eslováquia. Os CD encontram-se todos ou quase todos disponíveis nas plataformas digitais [Youtube, Sound Cloud, Spotify] e não só ficam acessíveis a milhões de interessados, como geram direitos significativos”.

O professor

SA é professor da Escola Superior de Música de Lisboa, onde se formou, depois de ter ensinado também na Academia dos Amadores de Música e na Academia Nacional Superior de Orquestra/Conservatório de Música da Metropolitana.

“O ensino tem sido sempre primordial para mim, não só porque acredito que temos de formar as novas gerações de compositores e músicos o melhor possível, como o facto de ensinar me fez saber mais do meu ‘métier’”, afirmou. “Ensinar obriga-nos a dominar as disciplinas que temos de lecionar, de forma permanente. Como sempre ensinei quase tudo, de harmonia e contraponto a orquestração, análise e história da música do século XX e história da música do cinema, acabei por ter de estudar mais essas disciplinas”.

É também o ensino que está na base da sua grande produção para crianças e jovens. “É uma aposta no nosso próprio futuro pois estamos a [habituá-los] à música portuguesa, e à nossa própria música, futuros intérpretes e futuros ouvintes, musicólogos”.

“O exemplo do meu mestre Fernando Lopes-Graça, mas também o de notáveis compositores para crianças, como [Bela] Bartók, [Maurice] Ravel, [Benjamin] Britten, [Sergei] Prokofiev ou Peter Maxwell-Davies, foram decisivos para que eu começasse a escrever para elas também, e confesso que me continua a dar muito prazer perpetuar essa importante tradição”.

SA recorda ainda que “muitos dos mais proeminentes compositores de hoje – um Luís Tinoco, um Nuno Côrte-Real, um Vasco Mendonça, um Pedro Faria Gomes, ou um Nelson Jesus, entre muitos outros –, foram [seus] alunos de alguma disciplina”, e que isso o deixa orgulhoso.

“Estou neste momento a condensar toda a minha experiência da composição num grosso volume, a sair, espero, em novembro de 2022 [na MPMP], intitulado ‘Guia dos Jovens para a Composição Musical’, que será essa súmula de quase 35 anos como professor e compositor profissional.”

Nascido em Coimbra, em 1968, SA estudou com Lopes-Graça, num longo percurso conjunto. Estudou também com Constança Capedeville e Christopher Bochmann, na Escola Superior de Música de Lisboa. Doutorou-se na Universidade do Minho, frequentou seminários e oficinas com compositores como Emmanuel Nunes, Luca Francesconi, Jorge Peixinho, Louis Andriessen e Simon Bainbridge.

O compositor

Acima de tudo, SA compõe. Apresenta um dos mais ricos catálogos da música portuguesa, centenas de títulos, entre obras orquestrais, para conjuntos de câmara, instrumentos a solo e para voz solo e coro, a que junta, com uma regularidade admirável, obras para crianças – quer como público quer como intérprete – quase sempre em contexto pedagógico e sem ceder ao imediato.

Com a composição, conjuga escrita e reflexão sobre música, tendo publicado livros como “A Invenção dos Sons” e “Um Piano Singular – conversas com Olga Prats”. A sua própria obra emerge desse tipo de interiorização, como acontece em “Hukvaldy Cycle”.

“Na minha música, há sempre uma ligação à tradição. Não sou um modernista anti-tradicionalista. As coisas mudam, o passado vai acumulando. Eu considero tudo o que está para trás de mim, seja um acorde em Dó Maior, seja um cluster”.

Dá exatamente como exemplo o “Hukvaldy Cycle”, em que harmonia tonal coabita com a sua ausência ou com ‘clusters’ (agregado de tons sucessivos). Trata-se da obra mais sofisticada e de caráter mais modernista das que agora são editadas em disco, e surge precisamente de uma reflexão com o universo de Leos Janacek, que se prolongou por dez anos.

No caso de “Bows Up!”, as obras reunidas cruzam referências da modernidade da música portuguesa para orquestra, desde Luís de Freitas Branco (na edição digital) e António Fragoso, até Joly Braga Santos, numa linhagem que SA culmina. “Freitas Branco foi o amado professor de António Fragoso e Joly Braga Santos, e mais tarde ensinou Fernando Lopes-Graça”.

Neste álbum, diz SA, “só falta uma peça de Alexandre Delgado [para completar a linhagem], porque ele foi aluno de Joly. E então teria ficado perfeito”, disse ao JL.

Em mãos, tem agora o Concerto para violino “Le Tour de Passe-Passe”, uma encomenda da Orquestra Metropolitana de Lisboa, que deverá estrear em julho, no Centro Cultural de Belém.

“Escrever um concerto para violino hoje em dia, após tantas obras-primas com lugar permanente no repertório, é francamente intimidante”, confessou. “Antes de escrever sequer uma nota, estabeleci que esta seria uma obra em três andamentos, como habitual”, embora a ordem não obedeça ao tradicional rápido-lento-rápido. Os seus títulos – “Le Tour de Passe-Passe”, “Luna Park”, “Dreaming (Passacaglia)” –, embora não sejam descritivos, “mas meramente ponto de partida poético”, explicam-se por si mesmos.

Segundo Azevedo, neste concerto, “toda a música deriva da parte solista que foi sendo construída, primeiro, em ‘particella’, sendo a parte orquestral apenas esboçada, e só no fim completada”, um pouco o inverso do seu processo regular, baseado diretamente na partitura orquestral.

O compositor trabalha ainda uma ópera sobre Stefan Zweig, para a temporada de 2023-24, e prepara a edição de obras do património português, revistas a partir dos manuscritos, nomeadamente “Trinte-Six Histoires pour amuser les enfants d’un artiste”, de Francisco de Lacerda, e “Música de piano para as crianças”, de Lopes-Graça, que deverão ser publicadas este ano pela MPMP.

Para os próximos meses, há já duas dezenas de concertos agendados, por todo o país, com obras suas, como a fantasia “A Espanhola” (orquestração de uma peça de Octávio Sérgio), e o “Concerto de Sorolla”, para guitarra portuguesa, a estrear em março, e que deverão ser reunidas em disco, por Paulo Soares, como solista, e a Orquestra Filarmonia das Beiras, com o maestro António Vassalo Lourenço.

A apresentação do conto musical “Kô et Kô – les deux esquimaux”, inspirado em Maria Helena Vieira da Silva e Pierre Gueguen, está marcada para 06 de março, no Arsenal de Metz, em França. Em Paris, a pianista Diana Botelho Vieira interpretará, em maio, na Casa de Portugal, os Cadernos 1 e 2 das “Peças Rústicas”, e levará a mesma obra a Espanha, em outubro.

No dia 10 de junho, a Sonatina n.º 2 de SA será ouvida na Maison d’Ile-de-France, em Paris, um mês antes da estreia do Concerto para violino, por Ana Pereira, com a Orquestra Metropolitana de Lisboa.

Além de “Popularuskia I”, pelo Quarteto de Cordas de Matosinhos, a edição em disco, ao longo deste ano, deverá ainda abranger o “Serenade Quartet”, pela Camerata Nov’Arte, e o Concertino para violoncelo e sopros, por Nelson Ferreira e a Camerata Silva Dionísio.

Está igualmente prevista a gravação da Suite Concertante e dos Concertinos para Flauta e Cordas n.ºs 1-3, pela Metropolitana de Lisboa, com Nuno Inácio, como solista, assim como dos cinco Concertos para piano, pela Orquestra de Câmara de Cascais e Oeiras, e a pianista Diana Botelho Vieira, companheira de vida do compositor, “importantíssima” em cada um dos seus projetos, como SA fez questão de sublinhar. “Somos um duo”, garantiu.


Maria Augusta Gonçalves, in Jornal de Letras | 12-01-2021

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Sérgio Azevedo
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